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sábado, 13 de março de 2010

Sobre a felicidade - visão pessoal.



A felicidade é algo investigado por várias áreas do conhecimento. A psicologia, a filosofia, a biologia, a sociologia e outras ciências discorrem sobre o assunto.
Falar sobre o prazer, talvez seja mais simples. Afinal o prazer tem uma causa específica ou uma junção de várias causas. Mas o mesmo pode ser pensado sobre a felicidade?
E o desejo? Terá ele alguma relação com a felicidade?
Não há uma resposta imediata, mas podemos pensar muitas coisas sobre o desejo. Primeiramente, será que tudo o que desejamos é uma vontade nossa intrínseca? Você pode fazer uma lista do que deseja hoje. Provavelmente você vai dizer: Desejo ser um profissional bem sucedido (sim, você não é o único), desejo casar, ter uma bela casa, morar na praia, ser advogado, ser secretária, professor... e assim por diante.
Devo te dizer que se deseja algo descrito acima, seu desejo não é original. Almejar essas coisas não é algo de dentro de você. Isso é o que a sociedade deseja e conseqüentemente tais desejos são refletidos nos indivíduos. Quem viveu na Grécia antiga, por exemplo, desejaria ser um Rei ou um sábio. E agora, você consegue pensar em algo que você deseja de dentro de si?
Se deseja água, comida, sexo, também não se difere dos outros animais. Que desejos seus não seriam naturais ou sociais? Creio que ficou mais difícil pensar.
Mas não é difícil saber que a satisfação de tais desejos não garante a felicidade. Todos nós temos algum projeto de vida, uns mais estruturados, outros nem tanto. Chamamos de sonhos as ânsias que tais projetos produzem dentro de nós.
Ter sucesso nesse percurso, sem dúvida nos alegra, nos traz alívio e prazer. Afinal, o movimento de vida do homem é um movimento constante de projeção. A medida que se alcança um alvo, parte-se para outros e assim sucessivamente.
Expressões de alegria e satisfação são comuns a todo ser humano, já não podemos dizer o mesmo da felicidade. Até os infelizes riem e se alegram, até os felizes choram.
Vemos pessoas bem sucedidas, pessoas com uma família exemplar, com bons relacionamentos que não alcançam a felicidade, embora elas tenham fontes inesgotáveis de prazer. Por outro lado, podemos encontrar pessoas com grande dificuldade de se manter financeiramente, pessoas solitárias, pessoas que passaram por grandes perdas e dores e mesmo assim a luz da felicidade brilha nelas. Sim, porque não entendo felicidade como ausência de dor, mas como um estado sem explicação externa. Apenas se é feliz.
Que dinheiro não traz felicidade, todas as pessoas já acreditam de alguma forma. Mas se acredita que outras coisas mais essenciais ao homem constroem um sujeito feliz. O amor das outras pessoas, a segurança, o apoio e etc. Isso tudo é essencial para a expressão de uma vida plena. Mas ainda assim, não encontramos respaldo nos exemplos. Pessoas felizes e pessoas infelizes nem sempre vem de realidades tão distintas.
Então, onde procurar a felicidade?
Observemos uma pessoa feliz. O mais evidente é seu estado de espírito. Dá-nos a impressão de que sua alma voa, mesmo não tendo motivos.
Encontrar-se com o mundo é o segundo passo. O primeiro encontro ocorre dentro de si. Por isso entendo felicidade como uma substância espiritual. Não me refiro às religiões, afinal nunca encontrei uma em que todos os seus fieis são felizes ou em que todos deixam de ser.
Mas me refiro ao encontro de si, ao deitar da alma num aconchego divino. Assim, o sujeito dirigi-se ao mundo com outra atitude. E ainda diante de dores, ele flui amor, o que deixa o ambiente mais propicio aos relacionamentos, a segurança e etc.
Pense naquele velho que levanta com o cuidado de não machucar mais seus joelhos, come seu pedaço de pão dormido e com gozo na alma agradece por mais um dia.
A felicidade é o sentimento mais natural de gratidão, sem que isso tenha que ser motivado. Gratidão, porque a alma se encontrou com uma fonte de vida que transcende os sentidos.
Sentir a alma livre traz uma pré-disposição para sentir as coisas leves.
Feliz, vem de Felix, que originalmente no latim queria dizer fértil, dar frutos no sentido literal, depois sendo usado de forma metafórica para afortunado, satisfeito.
A alma livre dá frutos através dos sentidos. É como um fluir entre ser e mundo que é filtrado e renovado pela percepção, para que se siga de forma melhor.
Vendo a felicidade como espiritual, vejo-a, resumidamente, como o estado de uma alma grata.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A Intolerável dor: Sociedade medicalizada.




Num Monumento à Aspirina


“Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia...”
(João Cabral de Melo Neto)



Que atire a primeira pedra quem não se identificou com poema acima. Afinal quem não se deseja livrar-se da dor no menor tempo possível?
O nosso apelo desesperado por dar fim ao sofrimento, nos tempos modernos, encontra o apoio da medicação. Temos pílulas para dormir, pílulas para não nos sentirmos tão tristes, analgésicos, anti-depressivos, diazepínicos e etc. Mas será que toda dor merece ser tratada como doença? A patologização do sofrimento tem deixando o homem numa angústia constante de negar sua natureza de angústias.
Podemos observar vários fatores culturais, históricos e sociais que contribuem para o uso exacerbado da medicação psicotrópica e para sua intensa representatividade para as pessoas.
Vamos pensar sobre o tipo de pessoas que nossa sociedade moderna exige, sobre o enquadramento do ser humano em um modelo pré estabelecido.
Atualmente só pensamos o funcionamento econômico e social a partir da visão capitalista como se fosse natural e intrínseca ao ser humano. Com o advento do capitalismo foi preciso que o trabalhador garantisse sua sobrevivência trabalhando em troca do salário e os que não se inserissem nesta lógica ficavam marginalizados.
Em nosso pais, antes mesmo da revolução industrial haviam grandes donos de terras e escravos. Nessa época, o trabalho era realizado pelos negros escravos e ganhava conotação pejorativa. . Então, devido à desvalorização do trabalho, havia a classe dos desocupados. Os vadios e arruaceiros juntamente com os bêbados, mendigos, órfãos, mães solteiras, todos que ameaçavam a ordem social eram acolhidos nas Santas Casas de Misericórdia. Os loucos também eram abrigados junto com esta clientela ou ocupavam as prisões junto com bandidos.
Essa era a lógica de exclusão para os que não se adaptavam ao modo de funcionamento proposto pela sociedade.
Os asilos surgiram para responder à questão do lugar dado a loucura. No Brasil o primeiro asilo, Hospício de Alienados Pedro II, foi construído na Praia Vermelha em 1852. A Santa Casa de Misericórdia teve participação nos trâmites políticos e na mobilização social para a construção dos asilos.
Nesta época o saber médico não era hegemônico neste tipo de instituição. Os asilos ainda eram dirigidos por freiras da Santa Casa e não tinham caráter de tratamento, mas serviam como abrigos feitos por caridade a estes pobres, os alimentando e os doutrinando religiosamente. Além disso, o grupo de alienados destes asilos continuava a encontrar-se em péssimas condições.
Em pouco tempo, o hospício não conseguia dar conta de abrigar todos os doentes e houve necessidade de construção de outros hospitais devido à demanda. O hospício abrigava a mesma clientela que fazia parte anteriormente das Santas casas e os internos ainda eram classificados sem nenhum critério.
Até que o primeiro médico assumiu sua direção, Teixeira Brandão. A lógica asilar continuava a mesma, mas nascia um novo poder. Um poder que veio impor uma nova prática, servindo ainda ao estado, dando continuidade às práticas de exclusão, isolando estas pessoas da sociedade, de um estado que tinha objetivos dos quais estas pessoas não se adaptavam.
Posteriormente a psiquiatria biológica começou a ganhar peso e houve grande avanço em pesquisas em diversas áreas, ganhando corpo nas mãos de Juliano Moreira. O caráter de saber universal se fez presente com força neste meio investiu-se em psiquiatria nas faculdades de medicina. A lógica biologista foi encarada como um grande avanço e trouxe pesquisas inovadoras.
É obvio que de acordo com a lógica médica os asilos não poderiam se manter como berço das “sobras humanas”. Havia de ser construído um local de tratamento, tratamento que a medicina se propôs a dar conta. No momento em que a medicina se apropriou da loucura, se deu a construção da figura do médico como o Senhor do saber e da ciência como detentora da verdade. O tratamento era diversificado, mas sempre baseado nos ideais de trabalho da sociedade, os loucos eram colocados em colônias agrícolas para produzir, pois era reconhecido nisto valor terapêutico.
Na década de 50, os antidepressivos foram descobertos por acaso no tratamento de pacientes tuberculosos ao se observar as alterações de humor em grupos de pacientes que usavam uma determinada substancia (iproniazida) que foi substituída depois por outra substancia em pesquisa, o ATC. No final da década de 50 já havia pesquisas de substancias que seriam aplicadas no tratamento da esquizofrenia, investigando seus efeitos antidepressivos. O sucesso das pesquisas foi tão grande que aumentou o investimento em estudos de outras substancias que poderiam ter os mesmos efeitos com menos danos à saúde. Estas pesquisas levaram a grandes impactos sociais e econômicos. As indústrias entenderam que poderiam ter uma grande fonte de lucro através dos efeitos do medicamento na vida das pessoas e na dinâmica da sociedade.

O ideal de sujeito promovido pela sociedade e sua relação com o uso de psicofármacos:

Convido o leitor a pensar sobre questões atuais que atravessam a vida do sujeito implementando ou reforçando essa prática diretiva ao uso de psicofármacos.
O funcionamento do país clama por pessoas saudáveis, as pessoas gritam em busca de lugar social, um lugar em que elas possam se inserir com dignidade e reconhecimento. A mídia promove um ideal de sujeito forte, feliz e potente, frustrando assim parte da população. As pessoas buscam algum recurso que as tornem adequadas ao que se espera delas.
A medicação então veio atender essa produção, colocando-se como um recurso capaz de deixar a pessoa dentro destes parâmetros sociais e livre de todo sofrimento e todo mal, como se ele não fosse inerente ao ser humano.
O aumento indiscriminado do uso de benzodiazepínicos e de sua dispensação nas unidades de básicas de saúde denuncia a não tolerância às dores cotidianas. Mulheres que moram em área de risco com constantes ameaças do tráfico se dirigem aos postos de saúde com a tentativa de buscar substâncias que amenizem seu medo e insônia. Passa-se a idéia de que o mais saudável e ter uma noite bem dormida e sensação de tranqüilidade mesmo em meio aos tiros. Não há uma crítica que se pergunta: Quem está doente, o sujeito ou a sociedade?
Tais impactos da violência unidos à desigualdade social, à mídia da felicidade perfeita, ao ideal de trabalho, à promoção da idéia de pessoas sem falhas e a diversos outros fatores levam à busca tanto de um alívio necessário quando de um ideal imaginado.
Oferece-se um paliativo que as desvie da dor de não ser o que se determina socialmente. Quero dizer que o funcionamento contemporâneo gira em torno do capital, mas seus efeitos vão para além do fator econômico.
O capitalismo gera uma necessidade de consumo através da ênfase na falta, há um constante esvaziamento e busca de preenchimento em uma velocidade muito grande. Os bens de consumo são apresentados com muita rapidez levando as pessoas a buscarem atualização constante, já que são vistas e reconhecidas pelo que possuem. Estes bens de consumo são bens materiais e também valores subjetivos que são vendidos à população com diversos interesses envolvidos.
A idéia de felicidade é vista como completude, como não ter a falta. A constante luta para completar a falta causa angústia. Isto é uma grande contradição, pois o sistema capitalista se sustenta na manutenção desta falta, produzindo produtos que prometem preenchê-la. Assim se constrói uma subjetividade e suas demandas.
À medida em que as necessidades são geradas e o suprimento dessas carências não acompanham o tempo seguinte, instaura-se um vazio que deve ser imediatamente preenchido ou elaborado. Não havendo tempo e interesse para a elaboração, há um pedido constante de rápido preenchimento. Aqui a medicação torna-se um atraente produto com a promessa de bem-estar e felicidade permanentes.
“Nestas cidadelas do capitalismo contemporâneo os limites do externo e do interno foram diluídos autonomizando mundos fechados sobre si mesmos como mônadas em trânsito, fragmentos em alta velocidade movidos pela avidez e pela carência produzida por um planeta que se atualiza a cada minuto. Nesta circulação qualquer parada é perigosa, poderá estancar o avanço da modernidade, reduzir a produção ou então diluir descongelando dos contornos das difíceis identidades.” (L. A. Baptista, 1997 p 180)

Ao usar o termo mônada, penso que Batista refere-se a um sujeito que não é mais visto em si, mas apenas como uma molécula integrante do sistema social, que trabalha velozmente para o funcionamento deste. A pessoa é vista como o átomo, molécula mais simples onde não há início nem fim, onde sua individualidade não é percebida. Sendo assim, sua finitude não tem tanta importância, já que existem outras moléculas que mantém o funcionamento. A morte não é percebida a não ser que atrapalhe todo o andamento em questão.
Onde
há uma falta constante, a satisfação é oferecida com promessas de mercadorias aos sujeitos consumidores, o que gera lucros ao sistema.
A idéia de individualismo dentro da nossa sociedade, ao mesmo tempo em que separou as pessoas, as tornou muito iguais. Há padrões a seguir, não só em questões objetivas, como também há padrões afetivos e emocionais, o que pode levar o homem a não suportar sua angústia frente à existência. Parece-me uma forma mais sutil de dominação, onde as pessoas têm supostamente o direito de escolha, de falar o que pensam, mas esses direitos são cerceados pelos valores impostos.
A saúde é vista como completo bem-estar, como ausência de males, uma felicidade idealizada e apoiada nos padrões contemporâneos.
Sob esse funcionamento a indústria farmacêutica lança mão de seus produtos oferecendo uma solução para a angústia da contemporaneidade e um lugar nela para o indivíduo.
No Brasil, em outubro/ novembro de 1986, os psicofármacos passam a ser vendidos apenas por prescrição médica. São lícitos, prometem bons resultados e são legitimados por um receituário.
Nos anos 70 e 80, houve uma explosão nas vendas de psicofármacos. O mais interessante é o fato de que os remédios mais vendidos não são aqueles que têm maior eficácia terapêutica ou se relacionam ao tratamento de um maior número de doenças. Os mais vendidos são justamente os que dão mais lucro as indústrias farmacêuticas.
Na saúde mental, o diagnóstico e tratamento não são definidos e indicados imediatamente e o sofrimento psíquico pode flutuar entre os limites do normal e do patológico. Em uma cultura que constrói padrões, qualquer diferença pode ser percebida como inadequado, como um desvio.
Para além destes dados, penso que o medicamento tem um efeito terapêutico subjetivo. Ele produz algo no sujeito que ultrapassa seu efeito químico, provavelmente efeito de sua representação.
Como todo objeto representacional, o psicotrópico vem carregado de passado, necessidade atual e expectativa de futuro. Seu uso deliberado ainda denuncia uma necessidade que circula atualmente, seja ela produzida ou real, e nele é colocada a esperança de um alívio e de completude.
Um paciente que tem ao seu alcance diversos dispositivos terapêuticos e, ainda assim, elege a droga como a solução de seus problemas está compartilhando de uma idéia socialmente produzida, isto é, um processo coletivo de produção de subjetividade.
Rogério Rodrigues (2005) também aponta algumas questões atuais sobre o uso prioritário de medicamentos psiquiátricos no tratamento dos pacientes.

“Na atualidade a demanda se apóia no registro do excesso, excesso que se observa em uma sociedade de consumo onde há um vazio de sentidos, uma busca desesperada por soluções tóxicas que amenizem o mal estar do sujeito na civilização (...) nesse contexto da pós modernidade, busca-se rapidez para solucionar questões do cotidiano, não há um tempo de elaboração, incertezas ou dúvidas.” (p12)


Não há uma tentativa de um movimento anti-psiquiátrico nesse texto. Mas sim a tentativa de fazer pensar sobre o que é o humano e suas expressões. Silenciar a dor com uma substância sem se pensar na causa dessa dor, suprime a capacidade de elaboração e mudança.
Passar por uma fase de luto quando se perde alguém, por exemplo, é necessário e saudável. Tentar se desfazer da dor através de uma droga em uma situação dessas pode ser desumano.
E livrar-se do sofrimento sem entendê-lo, nunca é um livramento completo, como uma poeira que se varre para baixo do tapete.


Obs. Esse texto é uma síntese adaptada do artigo “medicalização da sociedade e suas implicações na saúde mental, escrita por mim em 2007.









A mulher e o imaginário brasileiro: Houve mudanças?


Ao lermos um artigo, ou assistirmos qualquer discussão sobre mulher e sociedade, nos vemos comemorando a conquista de direitos básicos, festejando a liberdade que alcançamos ou que nos deixaram alcançar.

De um lado temos as orgulhosas mulheres que se gloriam de seu direito de votar e trabalhar, de outro, um movimento “mulher macho” que busca incessantemente pelo poder perene de dominação. Uns defendem a posição de sexo frágil, outros de sexo forte, havendo uma guerra a fio entre submissão, vitimização e super-valorização insanas do sexo feminino.

Afinal, onde isso nos levará? O que realmente mudou?

Aqui, não pretendo adotar uma posição extremista ou uma manifestação simbólica que venera as chamas que inflamaram os sutiãs há algum tempo atrás, muito menos reforçar a lógica machista que tem violado os gritos pela igualdade. Mas, refletirei sobre as dinâmicas que ocorreram sobre o tema, se houve mudança de mentalidade ou apenas modernização da velha maneira de pensar. Minha discussão focará na realidade brasileira.

Antes, como sabemos, o funcionamento social era planejado para o homem. As regras religiosas, os direitos e decisões não cabiam á mulher.

Antes da declaração dos direitos humanos, na Europa, se escreveu um tratado de direitos do homem, onde eram excluídas as crianças, os deficientes físicos e mentais e a mulher (todos considerados incapazes). Nesse período, Olympede Gouges publicou a Declaração dos Direitos da Mulher, ela reivindicava os mesmos direitos dos homens e terminou decapitada.

Conhecemos alguns reflexos dessas ações. Éramos privadas de qualquer direito cívico, do conhecimento acadêmico, do ingresso no mercado de trabalho e também de qualquer decisão familiar, liberdade sexual, além de alvo das repressões religiosas.

Com a declaração dos direitos humanos, documentou-se uma almejada mudança, “Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla” (Preâmbulo dos direito humanos universais)

Consideremos que mesmo com avanço proposto, a cultura de um povo é o que se movimenta de maneira mais lenta dentro do mesmo. Direitos cívicos conquistados, pelo menos documentados, e, a passos de tartaruga, direitos de fato, credibilidade.

Se fizermos uma comparação tosca com o passado, nos vangloriaremos dos louros colhidos. Afinal, hoje temos leis que nos protegem da violência. Hoje muitas de nós não somos mais criadas para pilotar fogão, casar e procriar, nós temos reconhecidas nossas expressões sexuais e nem por isso somos condenadas aos prostíbulos.

Vamos entender esse “avanço”. Lembra da velha máquina de costura da sua avó (porque seu avô, provavelmente não costurava)? Ela fazia barras, pregava botões, fazia vestidos, calças e trapos. Sua avó tinha que forçar sua velha e cansada perna sobre os pedais, onde adquiria um vasinho roxo a cada roupa nova. Além de tenaz, tinha que ser habilidosa com as mãos, para que o pano não escapasse da agulha e não entortasse o trabalho. Depois do fatigante labor, se tinha o vestido novinho em folha.

Hoje, podemos entrar em um ateliê de costura e observar os estilistas e alfaiates em suas luxuosas máquinas de costura. Basta um toque e tudo vai para o lugar certo. Estão prontos os modelitos. Houve avanço tecnológico, inventores se esforçaram para trazer facilidade e produtividade. Mas para que serve a nova máquina de costura? Para fazer os mesmos velhos vestidos. Talvez com um corte da moda, mas são os mesmos vestidos.

Vemos hoje, uma contradição entre idéias futuristas e objetivos oblíquos. Somo seres modernos em busca do mesmo.

Se antes, a mulher sexual era uma prostituta, hoje é um objeto de consumo da sociedade. A mídia retrata com louvor a nossa “evoluída mentalidade”.

Nos comerciais de cerveja, temos o homem consumista, o que compra, que relaxa após o duro trabalho. E o produto está exposto, uma cerveja gelada e uma loura seminua. No “bar da boa” tudo está para o prazer masculino.

Num campeonato de vôlei masculino, a bola é o foco da câmera, enquanto no feminino, os shorts roubam a cena.

Além disso a mulher intelectual e de carreira promissora não substituiu a responsável única pelo lar. Você deve saber de cor e salteado o chavão das propagandas de sabão em pó e eletrodomésticos que dizem: “para você mulher que cuida da casa, do marido e ainda trabalha...” Ou “A marca da multi-mulher”.

E as pesquisas que tentam provar que a traição tem fator genético e os homens não podem controlar? Isso é intrínseco no senso comum, aposto que todos nós ouvimos alguma mulher traída dizer: “Ele é homem, safada é a outra!”

Ou seja, o homem ainda é livre para se entregar aos seus impulsos, ainda que estes desrespeitem alguém, enquanto a mulher ainda é a responsável pela fidelidade – E estamos no século XXI.

Porque só existem anticoncepcionais (pílulas) para mulheres? Será que a ciência ainda não é capaz de desenvolver uma pílula masculina, ou ela não seria rentável, já que a contraconcepção é vista como um dever feminino.

Prova disso são os programas de combate à gravidez na adolescência, que em maioria esmagadora são voltadas apenas as mulheres.

Nós mulheres ainda não abrimos mão dos nossos antigos papéis para compartilhá-los. Parece que esses nos dão uma sensação de conforto.

Até hoje ouço pessoas que acreditam que os homens têm mais habilidade para dirigir. Provavelmente não leram sobre os índices de acidente no trânsito.

Anos de repressão tem afastado as mulheres do gozo pleno de seus desejos, direitos e habilidades. A casa e a educação dos filhos não são vistos ainda como responsabilidade do casal. De modo geral, se reproduzem os antigos costumes. E essa descrição que faço se refere às grandes metrópoles, imagine o que encontraremos no interior do país.

Essa representação simbólica do sexo feminino é de difícil mudança, considerando que algumas estruturas mais concretas de exercício de direito ainda não foram cumpridas. Que dirá o campo das idéias?

Sexo frágil? Diria que frágil, não, fragilizado, sim. Pois toda minoria que é dominada pela parte do poder, tende a se enfraquecer, assim é com a pobreza e com outras partes desfavorecidas.

Reconhecemos a mulher pela sua intuição, sua sensibilidade e expressão das emoções. É verdade que temos tais características. Pois enquanto éramos impedidas de pensar, os homens eram impedidos de sentir, qualquer expressão de emoção ou delicadeza masculina era tratada de forma pejorativa. Isso trouxe prejuízo nos relacionamentos, para ambos os sexos.

Culparemos os homens por essa dinâmica social? Todos nós estamos presos a pensamentos retrógrados que nos impedem de avançar de forma significante.

Hoje já vemos algumas mudanças no que diz respeito às características típicas femininas e masculinas, está começando a nascer uma plasticidade, devido á maior tolerância.

Acredito que avançaremos quando pudermos compartilhar plenamente dos sentimentos e idéias concernentes aos seres humanos sem restrições de gênero.

Enquanto formarmos movimentos rebeldes ou, no outro extremo, nos submetermos, nunca entenderemos o significado pleno de igualdade.

Não precisaríamos de leis de proteção a mulher que apanha do homem se dispuséssemos de leis efetivas contra qualquer tipo de violência. Claro que na nossa realidade de hoje, tais leis tem efeito positivo, elas servem à nossa cultura. Havendo mudança de cultura, não serão mais necessárias.

Aliás, em nosso país, somos inclinados a leis de reparação. Acredita-se que anos de desigualdade são compensados promovendo uma desigualdade invertida. Ou seja, se mulheres e negros foram injustiçados, devem ter mais direitos que os outros. O que é uma grande ilusão.

Para exigir respeito é necessário que se tenha convicção de seu papel no mundo, caso contrário, nascerão vários movimentos sociais que apontam para alvos diferentes e o único porto seguro será a velha tradição.

E será que estamos dispostos a abrir mão dos velhos costumes que criticamos?




Por Vanessa Piuchi