Num Monumento à Aspirina
“Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia...”
(João Cabral de Melo Neto)
O nosso apelo desesperado por dar fim ao sofrimento, nos tempos modernos, encontra o apoio da medicação. Temos pílulas para dormir, pílulas para não nos sentirmos tão tristes, analgésicos, anti-depressivos, diazepínicos e etc. Mas será que toda dor merece ser tratada como doença? A patologização do sofrimento tem deixando o homem numa angústia constante de negar sua natureza de angústias.
Podemos observar vários fatores culturais, históricos e sociais que contribuem para o uso exacerbado da medicação psicotrópica e para sua intensa representatividade para as pessoas.
Vamos pensar sobre o tipo de pessoas que nossa sociedade moderna exige, sobre o enquadramento do ser humano em um modelo pré estabelecido.
Atualmente só pensamos o funcionamento econômico e social a partir da visão capitalista como se fosse natural e intrínseca ao ser humano. Com o advento do capitalismo foi preciso que o trabalhador garantisse sua sobrevivência trabalhando em troca do salário e os que não se inserissem nesta lógica ficavam marginalizados.
Em nosso pais, antes mesmo da revolução industrial haviam grandes donos de terras e escravos. Nessa época, o trabalho era realizado pelos negros escravos e ganhava conotação pejorativa. . Então, devido à desvalorização do trabalho, havia a classe dos desocupados. Os vadios e arruaceiros juntamente com os bêbados, mendigos, órfãos, mães solteiras, todos que ameaçavam a ordem social eram acolhidos nas Santas Casas de Misericórdia. Os loucos também eram abrigados junto com esta clientela ou ocupavam as prisões junto com bandidos.
Essa era a lógica de exclusão para os que não se adaptavam ao modo de funcionamento proposto pela sociedade.
Os asilos surgiram para responder à questão do lugar dado a loucura. No Brasil o primeiro asilo, Hospício de Alienados Pedro II, foi construído na Praia Vermelha em
Nesta época o saber médico não era hegemônico neste tipo de instituição. Os asilos ainda eram dirigidos por freiras da Santa Casa e não tinham caráter de tratamento, mas serviam como abrigos feitos por caridade a estes pobres, os alimentando e os doutrinando religiosamente. Além disso, o grupo de alienados destes asilos continuava a encontrar-se em péssimas condições.
Em pouco tempo, o hospício não conseguia dar conta de abrigar todos os doentes e houve necessidade de construção de outros hospitais devido à demanda. O hospício abrigava a mesma clientela que fazia parte anteriormente das Santas casas e os internos ainda eram classificados sem nenhum critério.
Até que o primeiro médico assumiu sua direção, Teixeira Brandão. A lógica asilar continuava a mesma, mas nascia um novo poder. Um poder que veio impor uma nova prática, servindo ainda ao estado, dando continuidade às práticas de exclusão, isolando estas pessoas da sociedade, de um estado que tinha objetivos dos quais estas pessoas não se adaptavam.
Posteriormente a psiquiatria biológica começou a ganhar peso e houve grande avanço em pesquisas em diversas áreas, ganhando corpo nas mãos de Juliano Moreira. O caráter de saber universal se fez presente com força neste meio investiu-se em psiquiatria nas faculdades de medicina. A lógica biologista foi encarada como um grande avanço e trouxe pesquisas inovadoras.
É obvio que de acordo com a lógica médica os asilos não poderiam se manter como berço das “sobras humanas”. Havia de ser construído um local de tratamento, tratamento que a medicina se propôs a dar conta. No momento em que a medicina se apropriou da loucura, se deu a construção da figura do médico como o Senhor do saber e da ciência como detentora da verdade. O tratamento era diversificado, mas sempre baseado nos ideais de trabalho da sociedade, os loucos eram colocados em colônias agrícolas para produzir, pois era reconhecido nisto valor terapêutico.
Na década de 50, os antidepressivos foram descobertos por acaso no tratamento de pacientes tuberculosos ao se observar as alterações de humor em grupos de pacientes que usavam uma determinada substancia (iproniazida) que foi substituída depois por outra substancia em pesquisa, o ATC. No final da década de 50 já havia pesquisas de substancias que seriam aplicadas no tratamento da esquizofrenia, investigando seus efeitos antidepressivos. O sucesso das pesquisas foi tão grande que aumentou o investimento em estudos de outras substancias que poderiam ter os mesmos efeitos com menos danos à saúde. Estas pesquisas levaram a grandes impactos sociais e econômicos. As indústrias entenderam que poderiam ter uma grande fonte de lucro através dos efeitos do medicamento na vida das pessoas e na dinâmica da sociedade.
O ideal de sujeito promovido pela sociedade e sua relação com o uso de psicofármacos:
Convido o leitor a pensar sobre questões atuais que atravessam a vida do sujeito implementando ou reforçando essa prática diretiva ao uso de psicofármacos.
O funcionamento do país clama por pessoas saudáveis, as pessoas gritam em busca de lugar social, um lugar em que elas possam se inserir com dignidade e reconhecimento. A mídia promove um ideal de sujeito forte, feliz e potente, frustrando assim parte da população. As pessoas buscam algum recurso que as tornem adequadas ao que se espera delas.
A medicação então veio atender essa produção, colocando-se como um recurso capaz de deixar a pessoa dentro destes parâmetros sociais e livre de todo sofrimento e todo mal, como se ele não fosse inerente ao ser humano.
O aumento indiscriminado do uso de benzodiazepínicos e de sua dispensação nas unidades de básicas de saúde denuncia a não tolerância às dores cotidianas. Mulheres que moram em área de risco com constantes ameaças do tráfico se dirigem aos postos de saúde com a tentativa de buscar substâncias que amenizem seu medo e insônia. Passa-se a idéia de que o mais saudável e ter uma noite bem dormida e sensação de tranqüilidade mesmo em meio aos tiros. Não há uma crítica que se pergunta: Quem está doente, o sujeito ou a sociedade?
Tais impactos da violência unidos à desigualdade social, à mídia da felicidade perfeita, ao ideal de trabalho, à promoção da idéia de pessoas sem falhas e a diversos outros fatores levam à busca tanto de um alívio necessário quando de um ideal imaginado.
Oferece-se um paliativo que as desvie da dor de não ser o que se determina socialmente. Quero dizer que o funcionamento contemporâneo gira em torno do capital, mas seus efeitos vão para além do fator econômico.
O capitalismo gera uma necessidade de consumo através da ênfase na falta, há um constante esvaziamento e busca de preenchimento em uma velocidade muito grande. Os bens de consumo são apresentados com muita rapidez levando as pessoas a buscarem atualização constante, já que são vistas e reconhecidas pelo que possuem. Estes bens de consumo são bens materiais e também valores subjetivos que são vendidos à população com diversos interesses envolvidos.
A idéia de felicidade é vista como completude, como não ter a falta. A constante luta para completar a falta causa angústia. Isto é uma grande contradição, pois o sistema capitalista se sustenta na manutenção desta falta, produzindo produtos que prometem preenchê-la. Assim se constrói uma subjetividade e suas demandas.
À medida em que as necessidades são geradas e o suprimento dessas carências não acompanham o tempo seguinte, instaura-se um vazio que deve ser imediatamente preenchido ou elaborado. Não havendo tempo e interesse para a elaboração, há um pedido constante de rápido preenchimento. Aqui a medicação torna-se um atraente produto com a promessa de bem-estar e felicidade permanentes.
“Nestas cidadelas do capitalismo contemporâneo os limites do externo e do interno foram diluídos autonomizando mundos fechados sobre si mesmos como mônadas em trânsito, fragmentos em alta velocidade movidos pela avidez e pela carência produzida por um planeta que se atualiza a cada minuto. Nesta circulação qualquer parada é perigosa, poderá estancar o avanço da modernidade, reduzir a produção ou então diluir descongelando dos contornos das difíceis identidades.” (L. A. Baptista, 1997 p 180)
Ao usar o termo mônada, penso que Batista refere-se a um sujeito que não é mais visto em si, mas apenas como uma molécula integrante do sistema social, que trabalha velozmente para o funcionamento deste. A pessoa é vista como o átomo, molécula mais simples onde não há início nem fim, onde sua individualidade não é percebida. Sendo assim, sua finitude não tem tanta importância, já que existem outras moléculas que mantém o funcionamento. A morte não é percebida a não ser que atrapalhe todo o andamento
Onde
A idéia de individualismo dentro da nossa sociedade, ao mesmo tempo em que separou as pessoas, as tornou muito iguais. Há padrões a seguir, não só em questões objetivas, como também há padrões afetivos e emocionais, o que pode levar o homem a não suportar sua angústia frente à existência. Parece-me uma forma mais sutil de dominação, onde as pessoas têm supostamente o direito de escolha, de falar o que pensam, mas esses direitos são cerceados pelos valores impostos.
A saúde é vista como completo bem-estar, como ausência de males, uma felicidade idealizada e apoiada nos padrões contemporâneos.
Sob esse funcionamento a indústria farmacêutica lança mão de seus produtos oferecendo uma solução para a angústia da contemporaneidade e um lugar nela para o indivíduo.
No Brasil, em outubro/ novembro de 1986, os psicofármacos passam a ser vendidos apenas por prescrição médica. São lícitos, prometem bons resultados e são legitimados por um receituário.
Nos anos 70 e 80, houve uma explosão nas vendas de psicofármacos. O mais interessante é o fato de que os remédios mais vendidos não são aqueles que têm maior eficácia terapêutica ou se relacionam ao tratamento de um maior número de doenças. Os mais vendidos são justamente os que dão mais lucro as indústrias farmacêuticas.
Na saúde mental, o diagnóstico e tratamento não são definidos e indicados imediatamente e o sofrimento psíquico pode flutuar entre os limites do normal e do patológico. Em uma cultura que constrói padrões, qualquer diferença pode ser percebida como inadequado, como um desvio.
Para além destes dados, penso que o medicamento tem um efeito terapêutico subjetivo. Ele produz algo no sujeito que ultrapassa seu efeito químico, provavelmente efeito de sua representação.
Como todo objeto representacional, o psicotrópico vem carregado de passado, necessidade atual e expectativa de futuro. Seu uso deliberado ainda denuncia uma necessidade que circula atualmente, seja ela produzida ou real, e nele é colocada a esperança de um alívio e de completude.
Um paciente que tem ao seu alcance diversos dispositivos terapêuticos e, ainda assim, elege a droga como a solução de seus problemas está compartilhando de uma idéia socialmente produzida, isto é, um processo coletivo de produção de subjetividade.
Rogério Rodrigues (2005) também aponta algumas questões atuais sobre o uso prioritário de medicamentos psiquiátricos no tratamento dos pacientes.
“Na atualidade a demanda se apóia no registro do excesso, excesso que se observa em uma sociedade de consumo onde há um vazio de sentidos, uma busca desesperada por soluções tóxicas que amenizem o mal estar do sujeito na civilização (...) nesse contexto da pós modernidade, busca-se rapidez para solucionar questões do cotidiano, não há um tempo de elaboração, incertezas ou dúvidas.” (p12)
Não há uma tentativa de um movimento anti-psiquiátrico nesse texto. Mas sim a tentativa de fazer pensar sobre o que é o humano e suas expressões. Silenciar a dor com uma substância sem se pensar na causa dessa dor, suprime a capacidade de elaboração e mudança.
Passar por uma fase de luto quando se perde alguém, por exemplo, é necessário e saudável. Tentar se desfazer da dor através de uma droga em uma situação dessas pode ser desumano.
E livrar-se do sofrimento sem entendê-lo, nunca é um livramento completo, como uma poeira que se varre para baixo do tapete.
Obs. Esse texto é uma síntese adaptada do artigo “medicalização da sociedade e suas implicações na saúde mental, escrita por mim em 2007.
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